Tabuada Cantada – Artigo de Renato J. Costa Valladares

Renato J. Costa Valladares
Renato J. Costa Valladares, Professor e Escritor, é Doutor em Ciências e Mestre em Matemática.

RIO DE JANEIRO [ ABN NEWS ] – No livro Memórias de um Sargento de Milícias, parágrafos iniciais do capítulo “Entrada para a Escola”, pode-se ler que “… chegaram os dois exatamente na hora da tabuada cantado. Era uma espécie de ladainha de números que se usava então nos colégios, cantada todos os sábados em uma espécie de cantochão monótono e insuportável, mas que os meninos gostavam muito.”.

Cerca de 100 anos depois de escrito, eu estava lendo aquele livro com prazer até o momento em que cheguei à última frase acima. Eu, um professor de Matemática, não podia concordar com aquilo. Aquelas crianças não podiam gostar da tabuada cantada. Por tudo que eu havia aprendido em minha profissão, as crianças deviam detestar aquilo que o próprio autor do livro classificou como “…uma espécie de cantochão monótono e insuportável…”. Em vez disso, os alunos contrariaram o autor na época em que ele escreveu o livro e, muito tempo depois, contrariaram um professor de Matemática – eu. Provavelmente muitos colegas meus também tenham sido contrariados.

Como estas contradições têm uma boa dose de teoria da conspiração é melhor não acreditar nelas e procurar outros motivos. A primeira explicação que surgiu era o fato de o livro ser uma obra de ficção sem grandes compromissos com a realidade. O autor tirou de sua cabeça que as crianças gostavam da tabuada cantada e, pronto, a questão estava resolvida. Parece uma boa explicação, mas deixa a desejar em um fato importante.

Manoel Antônio de Almeida – o autor do livro – tem uma obra significativa na literatura brasileira do século dezenove. Muitos literatos consideram-no o cronista das camadas sociais pobres do Rio de Janeiro, completando e sendo completado por ninguém menos que Machado de Assis. O cronista das camadas sociais mais abonadas.

É difícil acreditar que um escritor desse porte tenha introduzido no livro, uma inverdade desnecessária. A ficção se limita à trama e seus personagens. O restante da obra é formado pelas verdades do tempo, do espaço e dos costumes. Como nos limites da minha percepção “gostar de tabuada cantada” não faz parte daquela ficção, tenho que concluir que de fato, os estudantes gostavam deste estudo. Mas eu continuava sem saber o porque.

Aos poucos, bem aos poucos uma luz começou a surgir no fim do túnel. Ao comparar a disponibilidade de música nos séculos XIX e XX há uma enorme diferença. No século XX a eletricidade cada vez mais usada e o rádio cada vez melhor ofereciam música de boa qualidade a milhões de pessoas. A propaganda patrocinava os programas de rádio que, nos intervalos da música, divulgavam os mais diversos produtos e serviços. Músicos e cantores de bom nível artístico trabalhavam nestes programas. Vitrolas, radinhos de pilha televisão e outras formas de divulgação ofereciam música a todo mundo. Com o aperfeiçoamento e a evolução de automóveis, ônibus e similares, as pessoas podiam cada vez mais frequentar shows e outros tipos de programas musicais. Nas décadas finais do século XX e nas iniciais do presente século a eletrônica tem oferecido cada vez mais música. Enfim, qualquer criança dos tempos mais recentes dispõe de música em quantidade e qualidade.

No século XIX as coisas eram muito diferentes. A música era escassa. Um sarau aqui, uma viola ali, uma banda de música aos domingos, brincadeiras de roda com meninas cantando, circos que de tempos em tempos apareciam nas cidades e pouco mais do que isto era toda a música que se podia oferecer a uma grande quantidade de crianças.

Estes fatos parecem dizer que na escassa oferta de música, a tabuada cantada era uma importante fonte desta arte. Por este motivo os estudantes gostavam dela e, quem sabe, ela era uma forte motivação para o estudante ir à aula aos sábados.

Em reforço a esta hipótese volto ao trecho do livro em que o autor – provavelmente mais bem provido de música que as crianças – falou de um cantochão monótono e insuportável. Entretanto, ele teve o cuidado de ressalvar o gosto dos meninos.

Finalmente informo ao leitor que a minha visão sobre o assunto é uma conjectura cuja prova – se é que existe – eu desconheço.

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