Matemática: abstração e formalização – Artigo de Renato J. Costa Valladares

Renato J. Costa Valladares
Renato J. Costa Valladares, Professor e Escritor, é Doutor em Ciências e Mestre em Matemática.

RIO DE JANEIRO [ ABN NEWS ] – É bem conhecida a história do inventor do jogo de xadrez que, por seu invento, pediu ao rei uma recompensa cuja aparência modesta fazia crer que ela seria paga com alguns punhados de trigo. Cálculos matemáticos mostram que a recompensa era impagável, pois ascendia a uma quantidade de trigo equivalente à produção mundial de milhares de anos.

Cálculos como os acima são feitos com auxílio de um tema matemático conhecido, em sua forma simples, como Progressão Geométrica (P.G.), ou função exponencial (exp.), na forma completa. Trata-se de um recurso importante aplicado em uma infinidade de situações díspares entre si, como é o caso de juros, crescimento populacional (de humanos, peixes, bactérias, etc.), datações de objetos e fósseis, divulgação de boatos, decrescimento radioativo, etc.

O tratamento da contaminação radioativa recai no decrescimento radioativo. Este tratamento foi usado no Rio de Janeiro em pessoas que foram contaminadas na cidade de Goiânia – o acidente de Goiânia. Um dos “remédios” era a água que bebida ou usada em banhos, chegava pura ao organismo afetado e pouco tempo depois saia levando a parte do veneno correspondente ao decrescimento radioativo. Reduzia-se assim a intensidade da contaminação e a saúde do paciente ia sendo recuperada.

Voltando ao início deste artigo, vemos que, além de usos importantes, as P.G. aplicam-se a resolução de um problema irreal, versando sobre um inventor excêntrico que queria embaraçar o rei que desejava premiá-lo. Olhado sob esta ótica, o problema do xadrez é inútil e não compensa o trabalho de sua resolução.

Mas as coisas não são assim. Comparando o contexto do problema do xadrez com os outros contextos citados acima, vemos que o contexto do xadrez não passa de mera alegoria, enquanto os outros contextos são sérios. Como no processo de contextualização, a realidade do objeto contextualizado é sobreposta à realidade matemática, é necessário ajustar uma realidade a outra.

Para dar consistência ao que foi falado acima, vamos voltar ao acidente de Goiânia. É claro que o objetivo central do tratamento é curar as pessoas contaminadas. Assim se uma equação mostrar que o doente deve beber certo volume da água por dia, é necessário ver se esta quantidade é compatível com necessidades e possibilidades do doente. Se a equação “disser” que o doente deve beber uma quantidade excessiva por dia, as pessoas que cuidam dele certamente diminuirão a quantidade de água e usarão outro recurso para substituir o excedente da água que não podia ser usada. Desta forma a equação não foi integralmente cumprida e a matemática da descontaminação ficou diferente de outras matemáticas.

Com outros usos aparecem outras restrições. Por exemplo, juro é dinheiro e, em consequência, os cálculos referentes a este assunto se limitam à segunda casa decimal. Isto significa que a matemática do juro também fica um pouco diferente. Como “a matemática de um uso” pode não coincidir com “a de outro uso”, a Matemática – para não desaparecer – tem uma estrutura sólida que é conhecida como Matemática Pura (redundância?). Esta estrutura está sendo construída há milênios e ainda não se vislumbra o seu término. Como não podia deixar de ser é uma estrutura abstrata e formal.

Infelizmente a abstração e a formalização da Matemática são consideradas difíceis por muitos estudantes. Uma das maneiras de minorar este problema é criar contextualizações flexíveis que se ajustem à Matemática, sem reivindicar uma matemática especial. Neste caso, um inventor que não deseje as riquezas oferecidas pelo rei é um ótimo contexto para estudar as progressões geométricas.

Visto por este ângulo o problema do trigo e do xadrez é um desafio intelectual interessante e bem formulado, cuja abordagem é muito instrutiva. Neste caso faz todo sentido a exploração de suas potencialidades matemáticas, pois é justamente aí que reside a importância de sua resolução.

Em fim, se o inventor tivesse negociado com o rei uma recompensa viável, ele teria ficado rico. Entretanto a Matemática estaria um pouco mais pobre.

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